sexta-feira, 24 de outubro de 2008

NEGÓCIOS ESCUROS…


Você compraria um televisor, sabendo que ele era roubado, por muito barato que o ladrão o vendesse? Sabendo ainda que esse televisor pertence a um vizinho seu? Sabendo também que o gatuno ocupa ilegalmente a casa desse vizinho e que o mantem sequestrado? Claro que não. E no entanto, uma vez que a Comissão da UE, presidida pelo Dr. Durão Barroso, conseguiu a aprovação de uma proposta sua no Parlamento e no Conselho Europeu, é algo parecido o que você fará, cada vez que comprar peixe no supermercado ou na peixaria da esquina. A razão é simples: após um parecer positivo do Parlamento, o Conselho ratificou um acordo de pescas, que a Comissão negociara com Marrocos, ao abrigo do qual barcos espanhóis, portugueses e de outros países membros da UE poderão pescar nas águas do Saara Ocidental, território ilegalmente ocupado por Marrocos.

Sem papas na língua, o Prof. Roger Clark, da Rutgers Law School, nos Estados Unidos, perito em direito internacional criminal, chamou à Austrália “receptador de bens roubados”, quando esta firmou o Tratado do Timor Gap com a Indonésia, para poder participar na exploração de petróleo no mar pertencente a Timor-Leste ocupado. Linguagem clara, que serve como uma luva a este negócio escuro que a Comissão celebrou em nosso nome.

Quando soaram os primeiros protestos, a Comissão, envergonhada, assegurou que o acordo se aplicava apenas às águas de Marrocos, e não às do Saara Ocidental. Num segundo momento, qual Poncio Pilatos, tentou lavar as mãos do problema, afirmando que o acordo nada dizia sobre as águas do Saara e que a responsabilidade seria de Marrocos, se concedesse licenças aos barcos europeus para que nelas pescassem. Finalmente, sob a pressão de Marrocos (que, à semelhança do que a Indonésia fez com a Austrália, oferece a partilha do espólio para obter o reconhecimento da anexação), a Comissão concedeu que as águas do Saara Ocidental estavam incluídas no acordo. Apesar disso, incrivelmente, os serviços jurídicos do Parlamento e do Conselho foram de parecer que a pesca na área em questão não seria ilegal, desde que uma parte da contribuição financeira da União Europeia revertesse para o desenvolvimento da população local.

Mas roubo é roubo, por muito diáfano que seja o manto da hipocrisia e da mentira com que o tentem encobrir. A justificação jurídica do Decreto nr. 1 da Namíbia, promulgado pelo Conselho de Segurança da ONU, para proteger os recursos naturais daquele território (então não-autónomo), serve igualmente para a condenação da presente pilhagem dos recursos do Saara Ocidental. A passividade do Conselho de Segurança no caso do Saara deve-se à obstrução da França e à falta de vontade política de outros dos seus membros, não à falta de argumentos jurídicos.

Como Héctor Gros Espiell, no seu estudo sobre o direito à autodeterminação, peremptoriamente afirma, a comercialização e o uso, em todas as suas formas, dos recursos naturais pertencentes a um povo, cujo território está ocupado, pela potência ocupante, é ilegal, com todas as consequências legais que resultam desse facto. A Assembleia Geral da ONU afirmou repetidamente que a exploração e a pilhagem dos recursos marinhos e de outros recursos naturais de territórios não-autónomos por interesses económicos estrangeiros é uma ameaça grave à integridade e à prosperidade desses territórios. A Resolução III da Conferência da ONU que adoptou a Convenção sobre o Direito do Mar declara que, no caso de um território cujo povo ainda não alcançou a independência, as provisões relativas aos direitos e interesses ao abrigo da Convenção serão executadas para benefício do povo desse território, com vista a promover o seu bem-estar e desenvolvimento. Outro documento importante do direito material da ONU diz que nenhum Estado tem o direito de promover ou encorajar investimentos que possam constituir um obstáculo à libertação de um território ocupado pela força.
Ora o Saara Ocidental é considerada pela ONU uma colónia, inscrita na lista de territórios não-autónomos do Comité de Descolonização (apesar de a União Africana, e com ela mais de 70 países, o reconhecerem como Estado). Segundo as Nações Unidas é a Espanha (e não Marrocos) a Potência Administrante do Saara Ocidental; quer a ONU, quer a União Africana, consideram ser Marrocos uma mera potência ocupante. É, assim, evidente que Marrocos não tem quaisquer direitos sobre os recursos naturais do Saara Ocidental.

Em 2002, Hans Corell, o então Secretário-Geral Adjunto da ONU para os Assuntos Jurídicos, apresentou ao Conselho de Segurança um estudo específico sobre as consequências jurídicas da prospecção de petróleo no mar do Saara Ocidental por companhias estrangeiras, com base em contratos firmados com uma empresa estatal marroquina. Nesse estudo – apesar de controversamente ter equiparado os poderes de uma Potência Administrante aos de uma potência ocupante ilegal - ele concluiu que se as actividades de prospecção e de extracção, que viessem a ter lugar, não tivessem em conta os interesses e os desejos do povo do Saara Ocidental, violariam o direito internacional. Esta conclusão de direito aplica-se, obviamente, aos outros recursos naturais do território ocupado.

Quem pode exprimir os desejos do povo saarauí? A resposta já foi dada pela ONU, ao considerar a Frente Polisário o seu legítimo representante. E a Frente Polisário opõs-se frontalmente à inclusão das águas do Saara Ocidental no acordo, como fez saber a Joe Borg, o Comissário Europeu para as Pescas, e a Tony Blair, que presidia na altura ao Conselho Europeu. Não há pois volta a dar-lhe: uma potência ocupante está a vender os recursos naturais do território ocupado, contra os desejos expressos dos representantes do povo desse território.

Não se diga, tampouco, que o acordo tem em conta os interesses do povo do Saara Ocidental, como a Comissão, o Parlamento e o Conselho Europeu hipocritamente nos querem fazer crer. Uma grande parte do povo saarauí vive há trinta anos refugiado nos campos de Tindouf (Argélia), na Mauritânia e em Espanha. O número de colonos que Rabat introduziu ilegalmente no território ocupado é já, pelo menos, três vezes superior ao da população original. Quaisquer investimentos no Saara Ocidental dentro do sector das pescas vão necessariamente beneficiar as companhias marroquinas e espanholas aí instaladas, os altos militares de Marrocos ligados ao sector, e, em menor medida, aqueles colonos. Desses investimentos chegarão à população original, quando muito, algumas migalhas. Ora são os interesses dessa população original que se têm de respeitar, como Ben Bot, o então Ministro dos Negócios Estrangeiros holandês, sublinhou em 2006 ao responder a perguntas do deputado Van Bommel sobre o acordo.

A falsidade dos argumentos avançados pela Comissão é também desmascarada pelo facto de ela presumir que Marrocos poderá, até prova em contrário, comportar-se como uma Potência Administrante benevolente. Já se viu que Marrocos não é Potência Administrante. E muito menos benevolente, bastando para isso ler os muitos relatórios da Amnistia Internacional e da Human Rights Watch sobre as violações dos direitos humanos cometidas no território. Mas, acima de tudo, porque Marrocos repudia agora os dois acordos que subscreveu (o Plano de Paz de 1990 e o Acordo de Houston de 1997) e afirma irrevogável a sua “soberania” sobre “as províncias do Sul”. Mohamed VI, durante a visita colonial que fez em fins de Março de 2006 ao território ocupado, declarou: “Marrocos não cederá nem uma polegada, nem um grão de areia, do seu querido Saara”. Se esta é a posição de Rabat, que valor podem ter os argumentos da Comissão? E ainda que esta jure a pés juntos que o acordo de pescas em nada prejudica a questão do estatuto internacional do Saara Ocidental, a verdade é que ele vem premiar a anexação ilegal e pela força do território e constitui mais um obstáculo à solução pacífica do conflito.

Apesar de em Outubro de 2005 o Parlamento ter aprovado uma resolução onde se insistia na necessidade de preservar os recursos naturais energéticos do Saara Ocidental, como território não-autónomo, em Maio de 2006 acedeu aos desejos da Comissão e deu um parecer positivo ao acordo de pescas, sem o condicionar a uma emenda que excluísse explicitamente as águas saarauís, caindo assim numa contradição absurda e lamentável. Nesse mesmo mês, os governos da França, Espanha e Portugal (que já tinham feito pressão sobre os seus nacionais no Parlamento Europeu para que deixassem passar incólume e o mais rapidamente possível a proposta da Comissão) conseguiram que o Conselho ratificasse o acordo. A Finlândia, a Holanda e a Irlanda manifestaram algumas reservas, mas acabaram por votar a favor. A Suécia foi o único país que radicalmente se opôs ao acordo.

Nós, os membros da Western Sahara Resource Watch, apelamos aos cidadãos da União Europeia para que lutem pela denúncia deste infame acordo de pescas, que tão manifestamente viola o direito internacional. Se não querem comprar peixe pescado em águas turvas, se não querem comer peixe roubado aos saarauís, digam connosco, alto e bom som, à Comissão, ao Conselho e aos governos que se prestam a ser receptadores:
- vão pescar para outro lado!


The Right to Self-Determination, Implementation of United Nations Resolutions, UN, New York, p.27.
Por exemplo, a Resolução da Assembleia Geral da ONU 46/64, de 11 de Dezembro de 1991.
Carta das Nações Unidas sobre os Direitos Económicos e Deveres dos Estados, art. 16, nr.2.
United Nations Security Council, S/2002/161, 12 February 2002.
Res. 34/37, de 21 de Novembro de 1979, no nr. 7 da sua parte operativa, e Res. 35/19, de 11 de Novembro de 1980, no nr. 10

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